SÃO PAULO ANTES DA CHUVA

Sua imagem: um rastro dentro das noites amareladas, uma sombra recortada nas grades da janela, e os meus olhos só se abrem para enxergar você, felino, estrangeiro nas madrugadas, apenas silêncio e movimento, eu estou deitado, olho para você, um gato negro se desfazendo na imensidão da cidade.

Você e eu somos a minha solidão. Eu sou a manifestação da sua consciência. Eu sou o fruto da minha irrealidade. Você é um gato se desmanchando na imensidão.

 

Havia a arma que Anna me trouxera naquela sexta feira.

O silêncio flutuava sobre o vapor do chá preto, os vidros das janelas se enchendo de água, o ruído se incorporando ao vazio. Soltos, os cabelos de Anna se desmanchavam rumo aos seus braços como um único manancial de águas escuras, num movimento capturado, preso apenas à inércia. Sua boca guardava os dentes meio amarelecidos, pedras preciosas. Ao lado das xícaras o jornal aberto. O corpo. O sangue. O Sol. A rua. O vapor flutuava sob o pulsar do silêncio.

Pensei no menino com a pequena arma nas mãos. O chumbo.
As galochas de couro patinando pela grama enlameada no crepúsculo bucólico do interior paulistano cinquenta anos antes, nuvens vermelhas brotando sobre sua cabeça, e ele ali, um pequeno caçador no bosque de eucaliptos, concentrado e sozinho, o revólver firme nas mãos, os olhos acesos em busca de recortar a silhueta de um coelho ou uma raposa que passasse por ali, o cheiro iminente das pequenas mortes se confundindo com o que restara da chuva, galhos partindo sob seus pés, o coaxar dos anfíbios, sementes quebradas, os últimos feixes do sol descortinando o relampejo cantar de um pássaro ao entardecer.

 

Anna destaca o tambor da arma e o surpreende oxidado. Não restou nem uma peça de chumbo. Nem mesmo o gatilho funciona mais. Observo os olhos de Anna e me pergunto se ela é mesmo uma pessoa real. Nos seus olhos a chuva. Automaticamente, me lembro das nossas conversas acerca dos Tulpas, e pela primeira vez vejo-os como uma possibilidade dentro do meu universo. Os Tulpas são a materialização de processos conscientes manifestada em corpos de pessoas, animais ou seres fantasiosos. Há alguns relatos sobre essas aparições no livro Magia e Mistério no Tibete, de Alexandra David Neel. Através da meditação, ela criou para si uma alucinação que a acompanhava: um monge benigno e pequeno. Com o tempo, o monge foi se tornando mais nítido, suas feições mudaram, ele cresceu e começou a ser visto pelos companheiros de acampamento de Neel. E ela mesma deixou de apenas vê-lo, mas começou a senti-lo como um tecido em sua pele, uma pressão no seu ombro.
É verdade que Anna e eu não temos muitos amigos. E ela mudou desde que a conheci. Mas vai além disso. Há Tulpas que se tornam tão poderosos com o passar do tempo que são capazes de criar a outro Tulpa, e esse já não é eco da consciência de quem visualizou a primeira entidade, mas sim o desdobramento da meditação precisa e sólida de uma segunda consciência formada. De fato, às vezes me parece que todas as formigas da minha casa são a materialização física dos meus pensamentos. E as aranhas que surgem para devorá-las. E também o gato.
Anna me devolve seu olhar em silêncio, e vejo que ela usa uma fina maquiagem nos olhos, um traço tênue e esfumaçado de tinta preta que os fazem parecer pertencentes a uma egípcia. Na janela a chuva. No chá. O jornal. A chuva.
Mas se a noite chegasse ele não deixaria de ser menor do que o silêncio entrecortado pela canção das cascavéis, o burburinho primata nas copas das árvores, rostos se pronunciando entre os troncos retorcidos das grandes árvores. E a arma em sua mãos infantis já não seria o símbolo do seu poder diante da natureza, mas apenas uma defesa insignificante demais para o tamanho da noite que se erguia como uma onda no oceano negro de bosques distantes de tudo, perdidos do mapa, engolidos pelo escuro.
Mais tarde, as luzes o conduziriam de volta para a casa da fazenda, trêmulo e invisível no espelho do quarto. Amuado ainda pelo sorriso de seu pai tinindo como uma medalha ao título de grande caçador, o menino encontra seu corpo no reflexo. Na janela a noite. O estilhaçar do vidro. Na porta as batidas. O susto. E o menino alcançou o espelho perfurado, contornou com os olhos o estrago, o desencostou da parede e ali viu o corpo de um gato que dormia. No bucho o chumbo. O sangue. Seu gato. Ele mesmo, a sua única caça.

Deixe um comentário